03/06/2013
A boa-fé objetiva no contrato de franchising
O aquecimento da economia nacional nos últimos anos, aliado ao instinto nato do brasileiro em empreender (pois, segundo dados estatísticos do IBGE, o maior desejo da maioria da população brasileira é o de empreender e abrir seu próprio negócio), levou muitos brasileiros a adquirir uma franquia como forma de investimento.

O contrato de franquia empresarial é aquele por meio do qual o franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semiexclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício (artigo 2º da Lei nº 8.955, de 1994).

Trata-se, pois, de contrato regulado por legislação específica, a saber, a Lei nº 8.955/94, que em breves linhas traça as diretrizes da relação de franchising.

O Código Civil, por seu turno, regula as linhas gerais da contratação, se lhe aplicando todas as disposições não abrangidas pela lei especial.

Nesse passo, a jurisprudência pátria tem se consolidado desde a vigência da nova legislação geral civil no sentido de aplicação do instituto da boa-fé objetiva em relação ao contrato de franquia, típico contrato empresarial civil sem traços de relação de consumo.

Sobre o tema merecem destaque duas decisões exaradas por tribunais estaduais distintos. A primeira, emanada do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, cuida de caso de ação de rescisão contratual proposta por franqueado contra a franqueadora, no qual a Justiça se pronunciou em favor do franqueado pela ocorrência, no caso, de violação frontal ao princípio da boa-fé objetiva e do dever anexo de lealdade entre as partes (Processo nº 0033918-80.2006.8.19.0001).

Nesse caso concreto, o autor adquiriu uma franquia com base em Circular de Oferta de Franquia (COF) omissa em relação à questão crucial para a operação do negócio, no caso específico, de investimentos necessários à instalação física e operação do negócio.

O processo fora relatado pela desembargadora Célia Meliga Pessoa que, com muita objetividade e sagacidade, externa em sua decisão a possibilidade de denúncia do contrato em caso de omissão relevante na COF que destoe das estipulações contidas no artigo 3º da Lei nº 8.955/94.

A decisão é de extrema relevância, pois finca precedente valioso em relação a tema pouco ventilado no contexto jurisprudencial, qual seja, da aplicabilidade da boa-fé objetiva em contexto específico, mais precisamente em relação ao dever anexo de lealdade e probidade na relação de franchising.

Como cediço, a boa-fé objetiva está atualmente positivada no Código Civil por meio do artigo 422, o qual dita: os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. A probidade representa a conduta reta, verdadeira, em consonância com o sentido próprio da palavra que deriva do que é probo, reto e honesto, enquanto que a boa-fé objetiva está umbilicalmente ligada objetivamente às intenções exteriorizadas daquele que contrata, tanto em relação à fase contratual quanto no que pertine à sua execução.

É, pois, princípio que se liga à tudo que concretamente permeia a relação contratual, devendo ambos os contratantes manterem, tanto durante as tratativas quanto durante a sua execução, plena observância aos deveres de lealdade, probidade e honestidade. Vale dizer, todos os riscos e obrigações inerentes ao contrato devem ser previstos e assumidos, sob pena de infringência do princípio em comento.

No caso em análise, a decisão se pauta exatamente na ausência de lealdade e de veracidade no conteúdo da proposta apresentada ao franqueado, o qual, com base em premissas equivocadas, assumiu compromisso incompatível com aquele previsto na COF.

Da mesma forma, em caso parecido decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Processo nº 9163261-52.2004.8.26.0000, julgado em 2008), o Judiciário não só reconheceu a possibilidade de desfazimento do negócio com apuração das perdas e danos em caso de ausência de informações necessárias na COF, como também reconheceu a possibilidade de indenização por danos morais se comprovada a ocorrência de aborrecimentos, transtornos e frustrações decorrentes do inadimplemento do contrato de franquia.

Em ambos os casos temos que, incorrendo a COF e/ou respectivo contrato de franquia em qualquer omissão em relação a risco e/ou obrigação de relevância à sua execução, cuja correta assunção não fora oportunizada ao franqueado, queda-se passível sua denúncia, observadas, por óbvio, as peculiaridades do caso específico e seu enquadramento na hipótese legal ora discutida.

Afora tudo o quanto dito, as decisões servem, também, como parâmetro para casos similares em que eventual omissão atinja questão não prevista pelo legislador.

Imaginemos uma situação em que a COF obedeça formalmente aos preceitos contidos no artigo 3º da Lei nº 8.955/94, mas que, de outra parte, não expresse risco ou oneração efetiva à operação do negócio que não seja exigido expressamente pela legislação.

É o caso, por exemplo, de franquias que segmentam serviços agregados à marca principal para uma nova marca do mesmo grupo em que as lojas do serviço segmentado continuam a executar o serviço e concorrer (agregado o serviço da marca principal) com os serviços exclusivos prestados pelos novos franqueados da nova marca. Em casos tais, se a COF não especificar expressamente essa concorrência de serviços, de sorte a viabilizar a assunção, por parte do candidato a franqueado, desta concorrência desleal, estar-se-ia diante de modalidade de omissão relevante apta a viabilizar a discussão acerca da denúncia do contrato de franquia por infringência ao princípio da probidade e boa-fé objetiva, cumulado com pedido de indenização por perdas e danos.

Ainda que se trate de valiosos precedentes para àqueles que eventualmente sintam-se lesados em virtude de contratos dessa natureza que se enquadrem nas hipóteses discutidas, o fato é que antes de se contratar qualquer espécie de franquia vale muito a pena consultar um advogado para a avaliação da COF e respectivo contrato, de sorte a se evitar problemas futuros, uma vez que quem busca uma franquia busca a realização de um sonho e não a concretização de um pesadelo.

Fonte: Valor Econômico

 
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